15/05/2010

Cinza cor de nada.

(O conto é comprido mas tenham paciência, que vale a pena)

Vanusa acordou no frio acinzentado do sul com um leve sorriso no rosto, o próximo passo seria curto, mas doloroso, levantar. O quarto parecia pequeno, mas na verdade era cheio de tralhas, fotos, fitas k7, cds, DVDs, roupas por cima da TV, a TV por cima do som, o som por cima do criado mudo, um caos milimetricamente calculado.
Os cinzeiros cheios indicavam que a noite havia sido comprida.
- Missão cumprida - pensou ela.
Foi até o cinzeiro, encontrou um cigarro pela metade com uma marca de batom, no bolso de uma calça suja jogada no chão tinha um isqueiro, sem levantar acendeu o primeiro cigarro do dia, o gosto da boca já estava ruim mesmo, nada como um cigarro pra acordar, um cigarro no começo da manhã não conseguiria lhe matar, já que a madrugada foi cheia deles.
Levantou, saiu do quarto, o corredor que dava acesso ao banheiro parecia ter o dobro do comprimento normal, o triplo talvez, provavelmente era infinito, a luz e a dor de cabeça não ajudavam muito.
- ressaca filha da puta - pensava consigo enquanto se arrastava até o banheiro.
Sentada no sanitário, fumando, abriu um livro que nunca saía do banheiro, um achado, que lia todo dia de ressaca em que a noite foi verdadeiramente desastrosa e divertida “...Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas...” passava os olhos no texto e sorria confortada sem um pingo de ressaca moral.
Tomou um banho e andou molhada e nua até a sala, passou pelas janelas sem importar muito a vida alheia, e não importando se sua vida importava a eles, queria apenas algo pra beber, de preferência não alcoólico, não agora, garrafas esparramadas pelo chão depunham contra os bons costumes e davam o verdadeiro tom da noite passada.
Seus pensamentos giravam em torno do nada existencial que tinha tornado a sua vida, acordar, trabalhar, beber, foder, esquecer, acordar, um sistemático ciclo incrivelmente atraente, não fosse tão entediante. Os rostos, as conversas, os fiascos se repetiam, as orgias, as drogas e tudo mais passavam a ser metodicamente usadas até tornarem-se uma droga, e a necessidade de fugir da fuga se fazia presente.
Passava toda manhã assim, andando pelo apartamento curtindo o momento, tentando lembrar de alguma novidade da noite passada. se preparando pra viver como uma pessoa “normal” e ir parar o seu trabalho, pregou o ultimo botão do seu terninho cinza cor de nada, passou a mão na chave, na carteira de cigarro e foi-se embora.
Correu até o ponto de ônibus para seguir caminho do seu trabalho, uma caótica corretora de seguros, emprego, que por predileção procurou, gostava de acompanhar o infortúnio alheio, roubos, acidentes, sentia-se, estranhamente atraída por estes assuntos, programas policiais eram seu preferidos, mas não gostava apenas por gostar, acompanhava a reação dos envolvidos indiretamente nos casos, todo o teatro da tragédia humana repetia-se diariamente em todos os lugares e ninguém dava a devida atenção.
Há anos guardava dentro de uma pasta casos e mais casos de acidentes, homicídios, assaltos suicídios e outros sinistros que faziam parte do cotidiano alheio, deixava tudo guardado na gaveta da sua mesa, toda tarde quando chegava no trabalho lia um dos seus casos policiais, ou trazia mais algum para a coleção, guardava novamente e começava a sua labuta diária.
Vanusa trabalhava com mais alguns seres na sua repartição, pessoas que estranhamente não bebiam, fumavam ou corriam pelados bêbados pelo apartamento, casados ou casadas, todos consumidos pela vida, de certo modo, todos, inclusive ela, eram iguais, assim, envolvia-se com seus afazeres do trabalho para o tempo passar rápido e indolor.
Compulsando um processo de aprovação de apólice de seguro de vida deparou-se com um nome que lhe chamou a atenção Loretta Pellegrini.
Loretta Pellegrini era um nome pouco comum, era nova 26 anos, aliás a mesma idade que Vanusa, interesse momentâneo tomou conta de Vanusa, todavia, como era regra da casa logo deixou de lado o interesse e continuou seu trabalho, ficando guardado apenas aquele nome.
Na volta pra casa, como fazia trivialmente comprou sua bebida, sentou na cama tirou os sapatos, bebeu a primeira dose do destilado, passou os olhos no jornal e na última página, no obituário deparou-se com o nome Loretta Pellegrini, o jornal era de 10 de abril de 2007, três anos haviam se passado após a morte trágica, não dormiria aquela noite com a possibilidade de estar diante de uma fraude contra a corretora de seguros, mas não fazia muito sentido, fazer seguro em nome de alguém que já morreu, nenhum sentido, e realmente aquela noite não dormiu antes da quinta dose.
No dia posterior foi trabalhar mais cedo e com mais cigarros nos bolsos, queria desvendar o que estava ocorrendo, abriu as páginas do processo que dizia respeito ao pedido de Loretta, viu e reviu os documentos, pediu ao cartório de registros, informações complementares sobre a pretensa ex cliente talvez. A pessoa que havia morrido em 2007 era definitivamente a mesma pessoa que estava contratando a apólice de seguro.
Vanusa hesitou em delatar o caso ao seu superior, a curiosidade da morbidez do caso lhe tomou o corpo e o tempo, queria saber mais sobre Loretta, quem seria esta moça, e porque estaria usando um nome alheio, resolveu ligar para o telefone constante do cadastro.
Uma voz pouco amiga atendeu do outro lado.
- Alou?
- É da parte da senhorita Loretta Pelegrini?
- Depende.
- Do que?
- Várias coisas...
- Sei de tudo Loretta.
Fez-se o silêncio.
- Hum.... você sabe de tudo, e deve saber também que estou morta, vai fazer o que? Me matar, processar, prender? Estou morta querida tenha bom senso, mortos não sofrem com coisas da vida.
- E não fazem contratos em seguradoras.
- Alguns, não tome meu tempo, o que você quer afinal.
- Saber quem é você.
- Você já sabe, sabe de tudo aliás.
- Não o bastante.
- O que mais você quer saber, negue o pedido de seguro e pronto.
- Gosta de vinho?
- é para os fracos.
- whisky?
- Falamos a mesma língua querida.
- às 20:00 no Bar ao lado da matriz, vou estar de cinza.
- sou ruiva e estarei de preto, luto, sabe como é né?
- imagino, não deve ser fácil morrer.
- nem um pouco, beijo querida, gostei de você, vou gostar mais de perto.
O telefone desligou, Vanusa nem sequer sabia por que havia feito aquilo, quebrou o equilíbrio de uma vida calculadamente entediante, tomar um whisly com uma estranha já morta, caralho, nunca tive uma idéia tão absurda.
No outro dia o som do telefone quebra o silêncio do apartamento de Vanusa.
- Alou.
- Não quis beber um Whisky comigo querida?
-...
- Me liga, me surpreende, mas não teve coragem de me encontrar, quanto medo em uma pessoa só.
- medo eu teria se vivesse com outro nome.
- será medo ou coragem? É fácil morar sozinha em um apartamento frio e cinza. subir escadas com a mesma mecanicidade habitual, colocar uma blusinha velha e andar de calcinha ... bebendo até dormir, seu jeitinho de louca nunca me enganou Vanusa, mudando a cor dos cabelos sazonalmente, fumando freneticamente e gritando aos sete ventos nua que está stoned.
- o que você quer?
- meu whisky.
- você já bebeu.
- não gosto de ser observada enquanto bebo, não desce bem.
- não pareceu.
- já que você gosta de observar, vou beber no mesmo lugar a mesma hora hoje, quem sabe você tome coragem, ou chame a polícia, apareça.
O estrago já estava feito, pensou em milhares de possibilidades, mas ela já sabia de sua vida particular, e de seus gostos e desgostos na vida.
A angustia lhe consumia e assim passou o dia, pensando se deveria continuar em frente, andar pelo caminho desconhecido ou parar, denunciar, viver sua vida, alcoolicamente entediante, de viver por viver, andar como um morto fazendo peso no mundo, por mais angustiante que fosse a nova situação, ela era nova, e isso importava muito.
Passou mais um dia de trabalho com a mente afundada em pensamentos acerca do encontro noturno, saiu do escritório, correu até o seu apartamento, trocou de roupa, tirou o terninho cinza cor de nada, foi ao local do encontro.
O bar ao lado da matriz contrastava com esta, a matriz era grande, duas torres laterais, pintura nova, escadaria a frente, uma porta que dividia-se em duas, enorme, e na lateral direita, quase nos fundos da igreja, uma ruela quase carreiro que dava de encontro ao bar.
Pequeno, fachada de cimento, suja, porta e piso de madeira quase podres, os baleeiros escondiam o dono do bar sentadinho, com a camisa branca, já quase bege de sujeira com um pano de prato no ombro, era tão pequeno por fora aquele bar, mas por dentro esticava-se até onde a intimidade necessitava.
O balcão verde claro em frente da porta, era comprido e dava de para o fundo do bar, nas paredes escuras cobertas de cartazes antigos ficavam encostadas mesas do lado esquerdo do lado direito ficava o balcão formando um corredor, preferiu a cadeira logo na entrada do bar, perto da porta, que ficava perto da rua, e de frente para os fundo que dava acesso a um salão.
O bar estava vazio, encostou-se no balcão e pediu.
- Olá, um Marlboro vermelho, um cinzeiro e uma dose de whisky.
- O Whisky é cortesia da casa – retrucou o dono do bar, e continuou – ele está desde ontem te esperando aqui.
Pegou a bebida e o cigarro e foi até a mesa mais perto da porta, sentou, hesitou, arrumou o cinzeiro, cruzou as pernas, hesitou, acendeu o cigarro mas não bebeu o Whisky, tragou profundamente, levantou a cabeça, soltou a fumaça, quando abaixou a cabeça lá estava Loretta, sentada nos fundos do bar, com o copo de Whisky pela metade, apagando um cigarro no cinzeiro.
Loretta era ruiva natural, com pele extremamente branca como a de Vanusa, usava um terninho e saia pretos.
O terninho estava aberto e mostrava um corset vinho, usava salto Luis XV e óculos escuros, no dia anterior ela não parecia tão bonita, até porque ficou espiando-a do lado de fora.
Loretta fez um sinal com o copo virou o resto da bebida, logo em seguida foi servida de outra dose pelo dono do bar.
Vanusa engasgou-se na própria admiração, travou, não bebeu o Whisky, ela que nunca negara bebida, estava extasiada com a presença daquela estranha, tentou disfarçar o desconforto travaram uma batalha de olhares, Loretta tirou os óculos, tinha olhos castanhos, redondos e grandes, levantou-se em veio em direção de Vanusa, que fugiu em direção da saída.
Andou a passos ligeiros até seu apartamento, pensando em tudo o que tinha acontecido, e pensando em Loretta, ela era linda, estava confusa, nunca tinha sentido atração por alguém do mesmo sexo, nunca tinha sentido tanta atração na verdade, quando chegou no apartamento o telefone estava tocando;
- Oi
- Aquilo foi medo?
- Confusão.
- Está confusa?
- Uma moça tão linda sem saber o que fazer?
- sim.
- eu vou aí lhe ensinar o que fazer.
- espera!
O telefone desligou. Ela não sabia mais o que esperar nem o que sentir, medo, alegria, angustia, uma mulher linda viria ao seu apartamento e isso estranhamente estava lhe agradando, mas ela mal sabia quem era aquela mulher, nem seu nome verdadeiro, nem porque usava um nome falso. Nada fazia sentido.
Bebeu um gole dos grandes de um copo de Whisky da noite passada e esperou fumando no lado da porta.
Minutos depois escutou um grito, abriu a porta, Loretta subia o último lance de escadas com o rosto coberto de sangue, desfigurado, veio adentro e caiu morta no meio da sala do apartamento de Vanusa que fechou a porta e apagou a luz.
- Caralho - ela pensava no escuro – agora faço o que, vão achar que eu matei a morta, nem ao menos eu sei o nome dela, nem porque ela morreu.
Passou a madrugada sentada no seu sofá preferido, bebericando e fumando pensando no que fazer, se chamasse a polícia, seria presa, se fosse embora seria presa, se fosse presa teria uma vida nova, mas nem um pouco agradável.
- Quem diabos teria coragem de arrancar a pele do rosto de alguém?
Pegou a bolsa de Loretta e achou vários documentos, de três pessoas pessoas, Loretta Pellegrini, Maria Clarice Silva e Vanusa Gomes, todos com a mesma foto, a dela.
- Filha da mãe, falsificou documentos com meu nome, talvez quisesse me matar e usar meu nome, e agora eu posso ser acusada da morte dela.
Vanusa pegou todos os documentos, cartões e passaportes falsos e sumiu.
No dia seguinte a polícia invadiu o apartamento de Vanusa pois havia denuncia de que havia ocorrido um homicídio naquele local, o corpo foi reconhecido como o corpo de Vanusa Gomes, assassinada provavelmente às 23:00 horas do dia anterior.
A pele do rosto e tinha sido arrancada brutalmente, dizia a notícia de capa do jornal, nada justificava aquele homicídio, uma jovem que trabalhou até ás 18:00 horas e voltou logo às 21:00 horas para fazer hora extra não merecia morrer assim, declarava seu chefe ao jornal.
Mais uma morte incompreensível nas noticias de jornal fariam parte da coleção de recordes de Vanusa que acompanhou de longe seu velório e chorou ao ver seu corpo descendo ao sepulcro.
Um ano depois, Maria Clarice Silva retirou o prêmio da apólice de seguro de Loretta Pellegrini e Vanusa Gomes, e nunca mais foi vista.

02/05/2010

N . O

a passos lentos engoliu o nó...
a lágrima deu o ar da graça, efêmera...
ninguém sabia o que tinha a atingido
o cigarro satisfazia a fuga de cinco minutos...
tira o dedo daí que eu corro
não tira o dedo daí que eu morro
mas tira só pra ela respirar